Mesmo numa quarta-feira, mesmo sem ser no
Teatro Angrense, e em pleno momento de crise, foi louvável a iniciativa da
Culturangra em brindar a cidade com o espetáculo “Uma Coisa em Forma de Assim”,
da Companhia Nacional de Bailado.
Com uma casa quase cheia, o espetáculo acabou
por resultar no grande auditório do Centro Cultural, algo que alguns elementos
do público temiam, ou pelo simples facto de preferirem sempre o já referido
espaço.
Seria louvável que todas as grandes instituições
públicas com responsabilidades na arte promovessem digressões nacionais, uma
das melhores formas de levar a todo o território, principalmente ilhas,
espetáculos de grande qualidade, e acima de tudo, de grande atualidade, pelo
menos no panorama nacional.
Neste caso suplantou-se esse mesmo propósito,
pois trata-se de uma obra criada por alguns dos mais importantes coreógrafos
portugueses, a convite da Companhia Nacional de Bailado, ficando a composição e
interpretação musical a cargo de Bernardo Sassetti.
A ideia teve origem com vista a assinalar o
Dia Mundial da Dança, no passado dia 29 de abril, juntando os coreógrafos
Francisco Camacho, Clara Andermatt, Benvindo Fonseca, Rui Lopes Graça, Rui
Horta, Paulo Ribeiro, Olga Roriz, Madalena Victorino e Vasco Wellenkamp,
artistas com trabalhos muito distintos, para trabalhar com os bailarinos
residentes da companhia, e com a magnífica oportunidade de ter a música
interpretada ao vivo pelo próprio autor.
Durante junho e julho a companhia partiu
então em digressão por todo o país, cabendo-nos na sorte Angra do Heroísmo
(CCCAH, 6 de julho) e Ponta Delgada (9 de julho, Teatro Micaelense), depois da
estreia nacional a 28, 29 e 30 de abril no Teatro Camões.
“Uma Coisa em Forma de Assim” foi o título
escolhido para esta obra, baseado no livro de Alexandre O’Neill, que se trata
de uma compilação de artigos previamente apresentados na imprensa escrita, como
um conjunto de retalhos que os vários coreógrafos nos apresentam.
Cenário montado, luz apagada, começou o espetáculo
a tempo e horas. A primeira coreografia ficou a cargo de Madalena Victorino, e
contou com todos os bailarinos participantes nas restantes peças. Foi talvez o
momento mais arriscado e irreverente, ao estilo da muito aclamada autora.
O segundo momento da noite ficou a cargo de
Vasco Wellenkamp, talvez uma dos mais credenciados e conhecidos nomes do
bailado português, com um estilo mais romântico e clássico, sempre no registo
do contemporâneo, e com a excelente bailarina principal Peggy Konik. Depois seguiu-se
a coreografia de Paulo Ribeiro, um favorito pessoal, e que se tornou no
preferido da noite, com um corpo de quatro bailarinos, com um ambiente muito
orgânico, fazendo-nos lembrar o planeta e a solidariedade que talvez deveria
haver nesta fase da nossa vida.
Rui Lopes Graça, bailarino solista da
companhia, coreografou a peça seguinte, com um bonito, romântico e intenso par,
com destaque para a bailarina Yurina Miura. Depois tivemos uma apresentação de
Francisco Camacho – uma primeira vez para mim – com um divertido e físico duo
masculino. Outro dos momentos altos da noite foi a coreografia de Rui Horta,
outro facciosamente preferido pessoal, com um potente solo de Marta Sobreira,
conjugando várias nuances sobre o corpo, numa performance muito física, ao bom
estilo do coreógrafo.
A peça imediata esteve ao cargo de Benvindo
Fonseca, outro bom regresso à Terceira. Foi claro o seu sensual estilo e traço
nesta romântica coreografia, bem suportada pelo bailarino principal Tomislav
Petranovic. Depois foi Olga Roriz, aplaudida coreógrafa, que apresentou uma
estética muito própria, qual Paula Rego da dança portuguesa. Uma mulher
intensa, perdida e confusa... mas poderosamente interpretada por Isabel
Galriça.
A concluir, nova coreógrafa de eleição
pessoal, Clara Andermatt, e que felizmente não defraudou as expectativas,
criando um final em grande, envolvendo totalmente os bailarinos Irina de
Oliveira e Nuno Fernandes no instrumento central desta noite: o piano de
Bernardo Sassetti.
Mesmo com os referidos preferidos pessoais, a
grande capacidade física e disponibilidade emocional dos bailarinos, e os
destaques para as bailarinas Marta Sobreira e Irina de Oliveira, a noite foi
também muita de Bernardo Sassetti. Sempre bem recebido na ilha, onde tem um
grande número de fãs, esteve sempre de corpo e alma na obra, do início ao fim,
com altos e baixos de intensidade e de participação nas coreografias. Muito
bom.
O público terceirense, que ocupava cerca de
3/4 da sala, soube avaliar a noite, aplaudindo efusivamente vários regressos e
apresentações dos artistas, mas não culminando com uma ovação em pé, que seria
exagerada na minha opinião.
Tratou-se também de um excelente momento
pedagógico, pois deu-nos oportunidade de vermos trabalhos de vários
coreógrafos, com diferentes estilos, tudo numa noite. Do mais romântico e
clássico, ao mais irreverente e transversal, presenciámos de tudo nesta bonita
e importante noite de dança na ilha Terceira.
Ao nível das expectativas do público podemos
identificar aqui alguma ambivalência: para quem conhece alguns dos trabalhos
dos coreógrafos presentes, ficou certamente com a vista e o coração saciados.
Para quem tem menos oportunidade talvez não.
Infelizmente são apresentados um ou dois
momentos de dança na ilha por ano, e nem sempre de qualidade, pelo menos
pedagógica ou inovadora. Isso faz com que exista um público que gosta realmente
de dança, mas que tem poucas oportunidades para assistir ao vivo a esses
momentos. Talvez para esse público, este evento tenha sido um pouco
descontextualizado. Mesmo assim, fica de certeza a beleza e a fisicalidade dos
movimentos dos excelentes bailarinos.
Repito, uma importante noite de dança.
PS. Talvez a última passagem de Sassetti pela ilha...
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