Segunda-feira, 12 de Fevereiro de 2007. Queijaria Vaquinha – Cinco Ribeiras.
Arriscando-me a cair na redundância, não resisto a escrever um texto sobre bailinhos de Carnaval, mesmo tendo a certeza que é um tema que agrada a todos, mas sobre o qual já muito foi dito.
Fui arrastado num dia de semana às nove da noite para a fábrica do queijo Vaquinha, nas Cinco Ribeiras. O orgulhoso proprietário, José Cota, decidiu brindar alguns bailinhos de Carnaval com uma parceria interessante: um ensaio em troca de uma noite de convívio e uma farta mesa!
Hoje foi um bailinho da vizinha Santa Bárbara. Mas foram vários os que passaram antes e passarão depois desta data.
Um dos primeiros aspectos a realçar desta singular noite é a baixa idade média dos elementos do referido bailinho. Assim por alto, com uma média de 22 anos. Que me perdoem os mais jovens se estou errado.
Estavam também presentes elementos do renovado e aniversariante Rádio Clube de Angra, que recolheram imagens e sons do ensaio, entrevistando ainda alguns dos seus elementos. Que grande amplitude, a dos bailinhos.
É impressionante pensar em tudo o que se passa em redor de uma dança de Carnaval, mesmo vindo de uma assumido citadino. Todos se entendem: jovens com velhos, homens com mulheres, criando um verdadeiro espírito de harmonia social. Em outros tempos fiz um pequeno trabalho de investigação sobre uma dança de espada, e dediquei-me à busca de conflitos que pudesse ingenuamente explorar. Não existiam colisões de qualquer género, apenas amizade, diversão, sossego.
Provavelmente pela 50ª vez, assistiam ao ensaio os fiéis amigos, mães, primas e namoradas. Embora o bailinho tivesse quase o mesmo número de homens e mulheres, a grande maioria dos “acompanhantes” eram do sexo feminino. Mas é de realçar que a tarefa de “segurar casacos” já não é exclusivamente feminina, como bem me alertou uma certa menina.
Podia, e apetecia-me, escrever sobre aspectos mais técnicos relacionados com as danças do Entrudo, como a perícia do pandeiro, a apresentação ou a despedida, os separadores e a disposição dos dançarinos. Mas não é disso que me apetece escrever hoje.
Sem querer dar o destaque da noite ao bailinho que ontem vi, não consigo deixar de referir um aspecto particular da sua performance: uma declarada interactividade com o público presente, ao recorrer a duas pessoas externas para participarem numa das cenas. Que me perdoem os puristas e os tradicionalistas, mas sem este tipo de inovação estariam em risco também os bailinhos. A renovação da tradição é a sua sobrevivência.
Sem querer também estragar a surpresa para quem tiver a oportunidade de assistir à actuação deste bailinho, não refiro o assunto nem o desenrolar da história, mas saliento vários aspectos, como a juventude de um dos três pandeiros (sendo os outros dois do sexo feminino – nada de novo, felizmente!), o excelente nível de execução instrumental, as afinadas vozes e as divertidas representações.
Além de todas as preocupações científicas/académicas que existem actualmente em relação ao tema do Teatro Popular, existe uma colossal parte de que se fala, mas não se dá a verdadeira importância. Não resisto a referir a muito utilizada metáfora da “ponta do iceberg”, mas é extremamente elucidativo em relação ao que se passa nas danças do Entrudo: o verdadeiro fenómeno por detrás deste movimento acontece durante os outros onze meses do ano. É óbvio que o momento alto, o clímax, é sem dúvida o intenso período de 3, 4 dias em que se percorre a ilha. Mas muito mais se passa durante a escrita e escolha do enredo; a escolha dos artistas e músicos; os ensaios e o decorar das falas; a elaboração das roupas; o convívio.
Por mais que se tente, é muito difícil descrever o ambiente intenso que se sente em redor dos bailinhos, originário do espírito de pertença de quem o acompanha e dos seus elementos – entre os quais não chega a haver verdadeira distinção.
Mesmo em Angra do Heroísmo, urbe de média dimensão (para não utilizar outro termo menos dignificante), já vivemos a uma velocidade que não nos permite ter momentos com a qualidade que o ambiente em torno de um bailinho proporciona. São horas e horas passadas com um grupo heterogéneo, fazendo lembrar histórias de outros tempos, sem televisão, sem ginásios e sem pressas.
Existem muitas questões importantes e interessantes a abordar numa investigação mais cuidada deste magnífico fenómeno. Pode-se mesmo ter uma base bem estruturada em três vertentes fulcrais: a componente musical, a componente da representação e a envolvente sócio-comunitária. Mas isso fica para outra oportunidade.
Muito se discute hoje em dia sobre a importante questão do Património Imaterial, tema muito querido da UNESCO, e felizmente em vias de ser trabalhado mais a sério em Portugal e nos Açores. São vários os exemplos actuais de fenómenos que foram considerados Património Imaterial da Humanidade, como o Carnaval de Oururo (Bolívia) ou os contadores de histórias em Marrocos. Também já existiram projectos relacionados com os Açores que tentaram se inscrever nesse elementar mapa da humanidade. Mas não é necessária tal grandeza institucional ou académica para se perceber qual a importância do imaterial, daquilo que não é palpável, mas que se transmite de geração para geração, como o olhar humedecido de um avô a ver um neto tocar o pandeiro.
E são também todos os outros jovens que um dia querem ser como o mestre ou o actor principal. São também as primeiras trocas de olhares entre rapazes e raparigas, desenvolvendo estratégias, arranjando coragens.
Depois do ensaio, afastadas as pessoas, é altura de voltar a colocar uma mesa no meio da sala, cheia de iguarias retemperadoras, como filhóses, suspiros e o inevitável queijo Vaquinha, tudo oferta do dono da casa. Todos os presentes são convidados a participar do festim. Acompanha-se com algo fresquinho, uns encostam-se ao bar, outros descansam nas cadeiras. Têm início conversas atravessadas, piadas a alta voz, trocares de olhares e o enxovalhar dos entrevistados pela já referida estação de rádio.
Nesta noite, o reduzido mas informado e atento público foi o verdadeiro vencedor, deliciando-se com esta breve antecipação do Carnaval.
Tudo e tanto dito, no fim resume-se essencialmente ao que deveria ser a coisa mais simples da humanidade: a partilha da felicidade.
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