terça-feira, 19 de junho de 2018

Pelo Tempo: "Loucura – a mais elevada forma de inteligência" (Novembro de 2011)

É de facto ténue a fronteira entre a loucura e a genialidade, mas tenho que admitir que sinto uma certa admiração por personalidades que vivem entre essas realidades. Atualmente as duas maiores figuras das artes em Portugal padecem dessa definição, orgulhosamente desprovidos de qualquer filtro de bom senso ou discrição, estejam num café a conversar com amigos, ou na televisão em direto num telejornal: Paula Rego e José Saramago. 
Ambos falam do coração, com uma emoção entusiasmante, e talvez por isso tenham atingido o estatuto e prestígio que tem. Com uma franqueza assertiva, basicamente dizem o que pensam, o que querem.
Paula Rego nasceu em Lisboa em 1935, no seio de uma família republicana e liberal, com fortes ligações às culturas inglesa e francesa, tendo efetuado os seus estudos em instituições como a St. Julian’s School em Carcavelos. Nos anos 50 sai de Portugal com vista a continuar estudos em pintura, mais especificamente para Londres, onde conhece o pintor Victor Willing, com quem se casa.
Volta a Portugal nos anos 60, nunca perdendo o laço com a Inglaterra, onde expõe ocasionalmente, assim como em Portugal, onde começa a ser respeitada. Nos anos 70 radica-se em Londres, dando início à sua famosa pesquisa sobre contos infantis.
Com a série da menina e do cão realiza uma viragem significante na sua carreira, ganhando volume e solidez no seu trabalho, assinando com a galeria Marlborough Fine Art, e catapultando o seu nome para a cena internacional, em 1987.
A partir de 1994, apresentou o seu trabalho mais conhecido, intitulado “Mulher Cão”, marcando uma nova fase da sua carreira, com alguma intervenção cívica e pública, aproximando-se de causas como o referendo sobre o aborto, assim como das mulheres socialistas.
Em setembro de 2009, com a inauguração da Casa das Histórias, um museu dedicado à sua obra e espólio, em Cascais, atinge-se a verdadeira validação de Paula Rego como o um dos mais importantes nomes das artes plásticas em Portugal.
Foram muitos os prémios recebidos ao longo da sua carreira, e a sua obra encontra-se espalhada pelos principais centros de arte mundiais. Recentemente quebrou o seu recorde de venda de um quadro, ao atingir cerca de 860 mil euros, pelo trabalho “Looking Back” (1987), tendo já vendido outros na casa dos 500 e 700 mil euros. 
Por vezes denominam o seu trabalho de “Arte Bruta”, defendendo a autora, no seu próprio estilo que a crueldade dos seus trabalhos contém uma vitalidade extraordinária, podendo mesmo ajudar a ultrapassar o nosso medo do quotidiano, como se pode perceber pelo famoso quadro de “Salazar a Vomitar a Pátria” (1960).
O outro “maluco”, José Saramago, é o nome que todos conhecem. A obra, serão infelizmente poucos, mas suficientes para se perceber a sua importância a nível mundial, e obviamente, enquanto personalidade de referência portuguesa.
Nasceu em 1922, numa família de agricultores, mudando-se logo de seguida para Lisboa, onde sem possibilidades para ingressar no ensino superior, frequenta a escola técnica e o seu primeiro emprego é de serralheiro mecânico.
A paixão pela escrita manifestou-se cedo, e aos 25 anos publica o seu primeiro romance, Terra do Pecado (1947). A sua segunda publicação abordou a poesia, com Os Poemas Possíveis (1966), tendo de seguida apresentado Claraboia aos editores, que depois de rejeitado, permaneceu inédito até 2011, sendo agora publicado postumamente.
Em 1977 publica Manual de Pintura e Caligrafia, livro importante da sua obra, mas cujo estilo só seria definitivamente definido com a publicação de Levantado do Chão, em 1980, onde retrata a vida de privações da população pobre do Alentejo.
A sua consagração em Portugal chega em 1982, com Memorial do Convento, convencendo os leitores e críticos, numa histórica crítica severa à Igreja, dando início a uma longa e péssima relação.
Muitas outras obras foram cimentando o seu lugar na história da literatura mundial, como O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de Pedra (1986), O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio Sobre a Cegueira (1995) e Todos os Nomes (1997).
Viveu os últimos anos da sua vida nas ilhas Canárias, tendo saído de Portugal por várias questões de tratamento. Faleceu aos 87 anos, tendo o seu funeral honras de estado, merecidas.
Foi o primeiro escritor de língua portuguesa a receber o Prémio Nobel da Literatura (1998), tendo também ganho o Prémio Camões (1995). Mas as suas polémicas são ainda mais deliciosas, como as suas públicas opiniões sobre o marxismo e a igreja, o seu aguerrido partidarismo no PCP, ou pelas ofensas ao povo judeu (2003), a ideia de integração de Portugal numa Federação Ibérica, afirmando que nada teríamos a perder, mas sim a ganhar (2007) ou as críticas ao atual papa Ratzinger em 2009.
Venham mais “malucos” destes.

Miguel Rosa Costa

http://aviventar.blogspot.com